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A força obrigatória dos contratos
Os estudantes de direito sempre aprenderam uma máxima do direito privado: tudo é permitido e pode ser contratado, exceto o que a lei proíbe - a chamada autonomia da vontade.
O direito é uma ciência humana que passa por constante evolução. O direito privado e, mais especificamente, o direito das obrigações e contratos, vem evoluindo de forma interessante nos últimos anos. Os estudantes de direito sempre aprenderam uma máxima do direito privado: tudo é permitido e pode ser contratado, exceto o que a lei proíbe - a chamada autonomia da vontade. Como decorrência, há um princípio básico em direito das obrigações: o "pacta sunt servanda", ou a "força obrigatória dos contratos". Ou seja, desde que o pactuado entre as partes contratantes não esteja vedado por lei e não haja defeitos no negócio jurídico, o contrato "faz lei entre as partes" e o cumprimento das obrigações assumidas é plenamente exigível entre os contratantes, salvo hipóteses de caso fortuito ou força maior.
Mas, a questão não se mostra mais tão simples. Nossa Constituição Federal de 1988 estabeleceu princípios como a proteção da dignidade humana (art. 1º, III), a solidariedade social (art. 3º, I) e a igualdade em sentido amplo (art. 5º, caput). O novo Código Civil de 2002 previu expressamente em seu artigo 421 o chamado princípio da função social dos contratos: "A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato"; e no artigo 422 estabeleceu o princípio da boa-fé objetiva: "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé".
O princípio da função social impõe que os interesses individuais devem se harmonizar aos interesses sociais que sofrerão implicações com a execução do contrato, tais como os empregos envolvidos, a tributação para os cofres públicos, a presença de ofertantes de produtos ou serviços no mercado etc. Outra interpretação para esse princípio seria o da causa do contrato, impondo-se que o intentado na contratação deva ser atingido.
O princípio da boa-fé objetiva implica um dever de honestidade entre os contratantes e traz uma série de condutas a serem seguidas por estes, tais como o dever de lealdade, o dever de cooperação, o dever de informação e o dever de segurança. O dever de lealdade traz a ideia de confiabilidade recíproca que deve ser sempre mantida entre os contratantes. O dever de cooperação impõe que as partes devam prestar auxílio mútuo a fim de facilitar o cumprimento das obrigações da outra parte, inclusive colaborando para tal. Por dever de informação, os contratantes devem divulgar, comunicar, transparecer, tudo o que for pertinente à consecução do objeto contratual e à devida contraprestação. E, ainda, o dever de segurança, pelo qual as partes devem eximir-se de causar danos de ordem física, psíquica e patrimonial entre si. Além de outras variações interpretativas em nossa doutrina.
A força obrigatória dos contratos foi mitigada pela função social
Esses princípios originaram-se de princípios estruturantes do Código Civil como a socialidade e a eticidade. Há de ser frisado que o próprio código contém disposição expressa em seu art. 2.035 retirando a eficácia de negócios jurídicos que não se subordinem aos princípios ali previstos.
Ainda, segundo a opinião do ilustre professor Celso Antônio Bandeira de Mello: "Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma qualquer". Compartilhamos dessa opinião, pois os princípios são as pilastras que estruturam o ordenamento jurídico. Desrespeitá-los é violentar a estrutura do ordenamento, suas bases. Se o ordenamento jurídico fica em risco, todo o direito assim o estará, trazendo o iminente risco de caos e comprometendo a paz social.
O Conselho da Justiça Federal, em suas Jornadas de Direito Civil, manifestou-se: "Enunciado 23 - A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana".
E neste sentido encontramos posições do Judiciário, inclusive em questões que não caracterizam uma relação de consumo.
Vejamos recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, no Agravo de Instrumento nº 0161161-39.2011.8.26.0000, envolvendo relação contratual entre um produtor de cana de açúcar e uma usina: "Ademais, com o advento do atual Código Civil, o princípio da força obrigatória dos contratos restou mitigado pela observância da função social dos contratos, da revisão contratual por onerosidade excessiva e da boa-fé contratual, que buscam trazer maior justiça e equidade nas relações contratuais contemporâneas..."
Logo, conclui-se que a "força obrigatória dos contratos" está vigente e traz segurança jurídica para os contratantes e para a sociedade como um todo. Contudo, ela não é mais um princípio absoluto como já foi outrora. A preservação do equilíbrio entre os contratantes, mesmo em relações paritárias, e o respeito à função social do contrato e à boa-fé objetiva são aspectos que se sobrepõe à autonomia das partes ao contratar, tendo em vista o horizonte de solidariedade, dignidade humana e igualdade impostos pela nossa Carta Magna.
Rodrigo Reis Bella Martinez é bacharel em direito pela USP e especializando em direito imobiliário pela Escola Paulista de Direito. Advogado atuante no contencioso cível e arbitragem e no consultivo imobiliário e contratual